O que é justiça?
A justiça diz respeito a todos nós, fala sobre o nosso estar no mundo, a maneira como nos relacionamos na nossa casa, bairro, cidade, país, de uma maneira que faça bem para as pessoas e que torne a nossa convivência pautada pela igualdade e pelo respeito O post O que é justiça? apareceu primeiro em Vida Simples.
Mesa de jantar sempre foi um lugar animado na casa da minha família. Era muito comum que o arroz, o frango e a farofa viessem acompanhados de debates acalorados. Discutia-se de tudo um pouco: música, filmes, política, enfim.
Muito por conta de meus pais (ambos estudaram Direito), o assunto na mesa também envolvia leis, julgamentos, justiça. Eu ouvia sem entender bem na época do que se falava, mas aprendi logo que a justiça era um assunto importante.
Comecei a compreender o quanto ela está presente em nossas vidas quando cursava jornalismo e um professor resgatou um episódio emblemático da nossa imprensa: o caso da Escola Base.
Todos somos responsáveis por cuidar para que o justo esteja sempre presente, nas leis ou em outro lugar
Você se lembra do o caso da Escola Base?
Em 1994, uma pequena escola em São Paulo, no bairro da Aclimação, foi parar nas manchetes dos noticiários do país. Os donos e funcionários foram acusados de abusar dos alunos, crianças. Por meses, histórias assustadoras circularam incessantemente, detalhando os supostos crimes.
Uma investigação foi aberta a partir da denúncia de alguns pais. A sensação, na época, era a de que não haveria outro desfecho para o caso: eles seriam condenados. Conforme o tempo e as investigações avançaram, no entanto, a verdade foi revelada. Não havia qualquer prova ou evidência de que eles houvessem cometido os crimes.
O delegado responsável pela investigação declarou que todos eram inocentes e encerrou o caso. Sendo assim, aparentemente, a justiça foi feita, não é? Arrisco dizer que não.
Justiça faz parte da moral humana, das normas que criamos para a sociedade que queremos ter
Mesmo inocentados formalmente, os envolvidos na história ficaram marcados para sempre. Aquelas pessoas tinham na pequena escola os seus sustentos. Assim, foram obrigadas a fechá-la diante da repercussão negativa e tiveram dificuldade para encontrar novos empregos por conta do suposto envolvimento com pedofilia.
Mesmo sem culpa alguma. Desenvolveram problemas emocionais. E, embora vários dos personagens injustiçados tenham processado veículos de imprensa e o Estado por conta do caso, até hoje as disputas continuam na Justiça para que consigam indenizações.
O que esse caso emblemático nos diz sobre a justiça?
A história da justiça
O que é justo? É apenas o cumprimento da lei? Ou essa ideia tem um sentido mais amplo, que não se limita apenas a seguir as regras à risca?
A ideia de justiça é familiar a muitos de nós. Desde cedo, compreendemos que existe a possibilidade de que o curso dos acontecimentos nos seja desfavorável e que isso vai contra o curso normal que o mundo toma.
Ainda crianças, somos capazes de qualificar um evento como injusto. E portanto, a partir daí, manifestar nossa indignação diante daquilo.
Há milênios, a humanidade discute o que é a justiça e tenta defini-la. A princípio, os gregos disseram que o justo é o que traz harmonia para a sociedade (Platão) ou que o mais importante é a justa distribuição dos recursos da sociedade (Aristóteles).
Dessa forma, ao longo da história, outros pensadores, como Santo Agostinho, Thomas Hobbes, David Hume, Immanuel Kant, John Rawls, perguntaram-se como definir esse conceito tão importante e debatido.
Moral e justiça
Como vimos no exemplo da Escola Base, a justiça vai além das regras. Ela faz parte da moral humana, ou seja, das normas que criamos para a sociedade que almejamos ter (e ser). Justiça, dizendo de maneira simples, é quando as pessoas recebem aquilo que merecem.
Ou seja, que todos devem ser tratados da mesma maneira. Por exemplo: se duas pessoas fazem uma mesma tarefa, devem receber o mesmo valor pelo que fizeram. Uma injustiça seria uma receber menos que a outra porque, por exemplo, é mulher. Uma coisa que a justiça não é, apenas, é a simples separação entre “certo” e “errado”.
Obviamente que essas duas categorias também fazem parte do seu universo, mas não são suficientes para defini-la inteiramente. Ser justo está além de fazer as coisas de uma determinada maneira; é mais profundo. Implica também avaliar o mundo de acordo com critérios que incluem direitos humanos, democracia, entre outras aspirações morais.
Justiça, portanto, é algo que determina a existência de certos princípios – que valem para todos. A existência desse padrão-ouro possibilita que separemos o justo do injusto.
No entanto, essa régua não se refere apenas à nossa experiência específica; caso contrário ela seria apenas uma característica individual. A justiça se aplica a todas as pessoas e seu modo de viver (e muitas vezes também aos animais e à natureza).
Lei e justiça não são sinônimos; leis podem ser injustas
Isso tudo quer dizer que a justiça não se limita ao mero cumprimento das leis. A legislação pode nos ajudar a chegar a uma decisão justa, mas sua simples existência não garante isso. Leis podem ser injustas.
A lei garantia a segregação racial nos Estados Unidos. Dessa forma, estados proibiam que negros e brancos ocupassem os mesmos espaços em restaurantes, ônibus e até banheiros.
Cidadãos como Martin Luther King, Medgar Evers e Rosa Parks perceberam a contradição entre a existência dessas leis e o que é justo e lutaram para mudar essas regras. Eles agiam em nome de uma justiça que considerava que todas as pessoas devem ter direitos iguais.
Existem diversos tipos de justiça, de acordo com os pensadores e pesquisadores. A primeira é a distributiva, que diz respeito à maneira como sociedade distribui seus recursos (riquezas, moradia, emprego).
Já a justiça corretiva trata de punir violações às leis. Geralmente, ela é relacionada ao chamado Direito Penal. Muitas vezes, as pessoas confundem vingança com justiça e desejam punir cidadãos infratores de maneira desproporcional ao seu crime (quando, por exemplo, se diz que “todo bandido deve morrer”).
Mas a punição não deveria servir como retaliação. Existe também uma modalidade chamada de compensatória, que define indenizações para danos e prejuízos a alguém ou a um grupo de pessoas. Essa é uma discussão de extrema importância.
De acordo com o filósofo americano John Rawls, a estabilidade de uma sociedade depende do quanto seus cidadãos sentem que estão sendo tratados de maneira justa. Quando isso não acontece, é sinal de que há uma crise.
Mais do que isso, as pessoas merecem ser tratadas de maneira igual, argumenta Immanuel Kant. Todos são dotados de dignidade, por isso, é preciso usar os mesmos critérios, sem exceção.
Como agir buscando a justiça
Mas como podemos usar esse raciocínio em nossas vidas? Existe uma maneira simples de pensar. É só olhar para uma lei, uma política pública, ou mesmo a maneira como as coisas funcionam e fazer a pergunta: isso é bom para todo mundo? Isso pode afetar as pessoas de maneira desigual?
Isso pode facilitar a vida de um e dificultar a de outros? Ou, no caso dos infelizes protagonistas do episódio da Escola Base: foi justo que eles tivessem sido acusados de um crime que ainda estava sob investigação?
E isso vale não apenas para essas pessoas específicas, mas para todos. É justo expor as pessoas na TV, rádio e jornais sem que haja um veredito?
Voltando ao início desse texto, agora entendo que as conversas na mesa de jantar da minha casa me educaram e me fizeram entender que a justiça é um assunto tão importante quanto difícil.
Ouvindo as discussões entre meus pais e irmãos, entendi que é uma responsabilidade coletiva cuidar para que o justo esteja sempre presente, seja nas leis ou em qualquer outro lugar.
Talvez por ter compreendido a difícil missão que o Direito impõe, nunca cogitei seguir o caminho de meus pais. Anos depois, porém, na faculdade de Jornalismo, estudando o caso da Escola Base, percebi que eu não poderia escapar desse assunto. Justamente porque ele diz respeito a tudo e a todos. Tentei fugir da justiça, mas ela é inescapável. Cabe a nós defendê-la, sob a pena de lamentar sua ausência.
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Sobre a Série Nossas Questões
A SÉRIE NOSSAS QUESTÕES é uma parceria entre a Vida Simples e o Me Explica, site de jornalismo explicativo fundado em 2013 por Diogo Antonio Rodriguez. Ao longo de seis edições, iremos destrinchar temas importantes relativos ao viver junto: democracia, direitos civis, direitos humanos, justiça, igualdade e liberdade de expressão.
DIOGO ANTONIO RODRIGUEZ graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Jornalista há 10 anos, também deu cursos sobre a importância da política para todos, na Unibes Cultural e na Virada Política, ambos em São Paulo. Em 2013, criou o site Me Explica, para tornar as notícias mais acessíveis.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 207 da Vida Simples
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